JOÃO PEDRO LIMA

All Rights Reserved ©João Pedro Lima

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João Pedro Lima é um fotógrafo de São Bernardo do Campo. Seu recém lançado livro “Derradeiro” foi publicado pela sua própria editora, Selo Turvo. João nos conduziu pelo misterioso projeto envolto numa névoa que pode ser tanto das antigas fábricas da região como das manhãs vizinhas à Mata Atlântica.


DERRADEIRO

Como você descreveria este projeto?

JPL: Derradeiro é um projeto que surgiu através de um sonho que tive no qual minha esposa, misteriosamente, desaparece. O livro é uma busca desses rastros, onde excessivamente, caminho pelas beiras de estrada à procura desses fragmentos. Lapso de tempo, memória em ruínas. Essas estradas estão cheias de mosquito, cheiro azedo e pessoas tossindo. As indústrias tomaram conta do pouco de ar bucólico que ali sediava. É uma viagem exaustiva, passos a contra-tempo que não levam a nada. No livro, tento de alguma forma explorar esse sonho ao máximo, para que se apague de mim e para que eu não anote mais os próximos que vierem.

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Derradeiro é um projeto que surgiu através de um sonho que tive no qual minha esposa, misteriosamente, desaparece.

Conte-nos um pouco mais sobre como esse sonho influenciou o processo de criação do projeto.

JPL: Foi como uma noite qualquer onde o sono é pesado e o corpo acorda cansado, mas nesse dia específico foi diferente. Acordei com pedaços de um sonho estranho, Alix havia desaparecido da minha mente por segundos (mesmo que ela estando do meu lado ao acordar). Fiquei desesperado com esse fragmento, pensando nele por dias e dias e isso não saia da minha cabeça. Nisso, pensei em escrever sobre esse trajeto, mas não encontrava as palavras. Recorri a ideia de fotografar o que teria acontecido, criando uma certa narrativa para dar ênfase a esse fragmento do sonho. O projeto começou a tomar vida ali. Passei quase dois anos fotografando os espaços industriais da cidade, mais especificamente nas pequenas vilas que contornam as indústrias. Aqui onde moro é uma região serrana, próximo do litoral, então há fatias de um mar bravo onde eu visitava para acalmar um pouco a cabeça. Quando vi que o trabalho já estava com muitas imagens impressas na parede, resolvi parar e começar a editar ao lado da Alix. Escolhemos as imagens e ela editou o sequenciamento do trabalho. Engraçado, tornar esse projeto em algo físico como o livro, tirou um peso enorme das minhas costas. As dores de cabeça não são tão frequentes.

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As imagens de “Derradeiro” parecem ter influência da fotografia japonesa, especificamente do grupo ao redor da revista “Provoke''. Uma característica importante desse grupo era a aceitação do acidente, do incontrolável, da evanescência. Como esses temas se manifestam na sua própria prática?

JPL: Trabalhar com a imagem quebrada é a forma que eu consegui chegar para manifestar as reminiscências apagadas por uma realidade que não é condizente com a que vivemos, a fim de dissimular a existência genuína. A imagem escombrada é por si só uma parcela de acidentes que, por muitas vezes, o autor busca propositalmente para fazer sangrar o corpo que ali habita. Tento buscar um pouco disso no meu trabalho, fotografando com o que tenho em mãos e não me importando com as configurações da máquina fotográfica. Me encontro tentando apagar o eu fotógrafo.

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Você nasceu, cresceu e continua morando em São Bernardo do Campo. A paisagem local, no limite entre o industrial e o natural, é um tema recorrente no seu projeto. Gostaria que você contasse um pouco mais sobre a sua relação com a cidade natal.

JPL: A relação com a cidade que moro é bem presente nas minhas fotografias. Estamos passando por um período pós-industrial. Bairros tradicionais, a praça central, a cultura punk, a memória está morrendo por aqui. Os trabalhadores já se entregaram para a morte instantânea, esquecendo que já iriam morrer pelo gás tóxico das montadoras automobilísticas. Isso me fez pensar que não teria o porquê de eu ir para a capital fotografar, sendo que é aqui onde está sendo sugado. Dessa forma, crio uma relação muito forte por esse pedaço de terra, querendo ou não, é a minha casa.

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Estamos passando por um período pós-industrial. Bairros tradicionais, a praça central, a cultura punk, a memória está morrendo por aqui.

Você mencionou o fato dos acontecimentos de 2020 estarem mudando o perfil dos trabalhos de fotografia de rua que você vê online, e talvez tenha influenciado seu próprio trabalho. Quais são essas mudanças e como você tem reagido a tudo isso?

JPL: A fotografia é algo que está sempre em mudanças - como tudo nas artes -, mas nesse ponto, vejo que a maneira que os fotógrafos de rua estão lidando com essa situação é bem diferente. No começo, a maioria deixou de ir à rua, visto que era impossível devido a extremidade da situação global que estávamos vivendo. Porém, isso mudou um pouco ao decorrer do tempo. O pessoal está se interessando mais na pesquisa como um processo lento, não focando apenas nos snapshots, mas começando a questionar o porquê. O foco não está mais nas pessoas, mas no ambiente como um todo. Dando interesse aos objetos, as situações, as passagens de tempo que esse espaço entrega. Uma certa introspectividade da rua. No meu caso, estou fotografando bem menos, porém me interessando mais nos processos que posso ter e/ou realizar para chegar na imagem. Sendo parte disso, a pesquisa no meu modo de criação está se sobrepondo, diferente de antes que eu apenas me interessava pela captura instantânea da imagem. Uma fotografia lenta, com processos cansativos e extensos.

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Quais os desafios específicos de ser um fotógrafo analógico em um país como o Brasil?

JPL: Como tudo aqui no Brasil, a conta vem em dobro. Querendo ou não, ainda somos colonizados. As explorações de nossa terra mãe pelas grandes potências imperialistas e esse frenético capitalismo de vertigem está presente de esquina em esquina - e isso reflete em tudo que fazemos por aqui, seja nas artes como no cotidiano de qualquer pessoa. Trabalhar com o filme fotográfico é um processo caro e pra poucos. A fotografia em si já é elitista, tratando-se do analógico, o nicho é bem menor. Temos que nos virar aqui com revelação, digitalização, ampliação ou qualquer outro tipo de processo. Por ser assim, as pessoas se ajudam bastante e isso nos faz continuar movimentando esse cenário, mas nem sempre é mil maravilhas. O perrengue é diário.

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O livro será lançado pela sua própria editora independente, o Selo Turvo. Como vocês começaram e que projetos já desenvolveram?

JPL: Sim, o livro será lançado pelo Selo Turvo. O projeto nasceu no começo da pandemia e enquanto eu estava produzindo minha primeira publicação, 'Living Ghosts'. Na época, eu e Alix Breda estávamos terminando de editar o sequenciamento do livro e partindo pro design final enquanto eu procurava alguma editora que tivesse interesse em publicar o trabalho. Notei que muitos selos não conversavam com a minha proposta e me senti na deriva, acabando por decidir auto-publicar. No último minuto, quando estava na gráfica fazendo os testes de impressão, Alix veio com a ideia de criar um selo para publicar nossos próprios trabalhos e nessa surgiu o Turvo, da margem e na vontade de pôr ao mundo os erros que estão engavetados, em prol da distorção. Desde então, em sete meses produzimos 4 livros, sendo um deles coletivo. Hoje o selo trabalha a seis mãos, Alix Breda, Vitor Casemiro e eu, obviamente.

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Notei que muitos selos não conversavam com a minha proposta e me senti na deriva, acabando por decidir auto-publicar.

Quais os planos futuros para o Selo Turvo e para o seu próprio trabalho?

JPL: Começamos esse ano já com a primeira publicação para fevereiro, que é meu livro. Depois, temos planos de publicar pelo menos mais 3 ou 4 livros esse ano, sendo que dois já estão em andamento. Gosto do ritmo que está se levando, sempre em movimento à procura de novas narrativas, se importando com as falhas que às vezes deixamos de usar, o borrão da vista quando acordamos de um sono profundo.

Para meu trabalho, os planos são incertos. Gosto de trabalhar em várias diagonais. Tenho um projeto mais ou menos engavetado chamado 'No fim a desordem cortou meu cordão umbilical' e penso em publicar ainda nesta década. Fora isso, estou dando importância ao que me mantém são durante esses tempos caóticos de extrema opressão que estamos vivendo. Vivo para assistir as coisas se normalizarem, para que as pessoas voltem a viver do jeito que deveriam. Estou amando mais a quem me faz bem, estou dando importância às pequenas coisas. Assim, refletindo um pouco no que produzo ou ficarei louco.

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